CAMPOS DO SUL

Museu da Ruralidade . Município de Castro Verde

À PROCURA DO TESOURO (1)

João e Amélia são dois irmãos de 10 e 12 anos que vivem em Almada, com os pais e o avô paterno, de oitenta anos, nascido e criado nos Aivados, concelho de Castro Verde, de onde saiu para ir trabalhar nos estaleiros da Lisnave, junto a Cacilhas, em 1970.

Apesar da casa de habitação da família não ser grande, possuía, no entanto, um enorme sótão que os dois irmãos adoravam explorar quando os pais não se encontravam em casa.

Num Sábado de Junho, desiludidos com o facto de não terem podido ir à praia como estava combinado - um impedimento de última hora do pai não o tinha permitido - os dois irmãos, aproveitando estarem sozinhos, subiram mais uma vez ao sótão.

Por entre caixas de brinquedos antigos e livros de escola já usados, João reparou num pequeno baú de madeira que nunca tinha visto antes. Esticou o braço, puxou-o, mas não o conseguiu abrir. Estava fechado com um cadeado. Foi então que chamou a irmã:

"Amélia chega aqui, vem ver o que eu encontrei."

Amélia, ao ver o pequeno baú nas mãos do irmão, disse logo: "vamos abri-lo. Será que tem joias dentro?"

"Não sei o que tem, não consigo abri-lo, está fechado com um cadeado", respondeu o João.

"O pai, na caixa de ferramentas, tem vários alicates, talvez com um deles se consiga cortar o cadeado, que até é bastante fino", sugeriu a Amélia.

E dito isto afastou-se para regressar com um potente alicate, o qual, à terceira tentativa, cortou o cadeado.

Movido o obstáculo que impedia a abertura do baú, os dois irmãos sentaram-se no chão, colocaram o pequeno objecto de madeira em frente deles e o João, muito lentamente, foi puxando a tampa para cima até que aos olhos deles surgisse o que se encontrava no interior da caixa.

O que viram deixou-os completamente surpreendidos. Não havia moedas, nem anéis, nem pulseiras, nem colares. Enfim, nenhuma joia. Apenas um papel amarelecido pelo tempo, dobrado em quatro partes.

A Amélia pegou no documento com a ponta dos dedos, desdobrou-o e colocou-o no chão junto ao baú.

Em frente dos seus olhos encontrava-se um mapa que tinha por título LOCAL DO TESOURO e, por baixo, em cima de vários traços encontravam-se as palavras MESSEJANA, PANÓIAS, ESTAÇÃO DE OURIQUE, AIVADOS, e uma cruz tendo mesmo ao lado a letra T em maiúscula.

Os dois irmãos ficaram momentaneamente mudos de espanto. O primeiro a falar foi o João que, entusiasmado, repetia: "encontrámos um tesouro, encontrámos um tesouro ...."

"Não, João, não encontrámos qualquer tesouro", disse Amélia, com isto fazendo o irmão "descer `a terra". "O que parece que encontrámos foi o mapa de um tesouro que se encontrará no local sinalizado neste mapa por um X e que não sabemos onde é, nem o que é."

Nisto, o João, já mais calmo, interrogou-se em voz alta: "mas quem colocou aqui o baú com este mapa? E dando a resposta a si mesmo acrescentou: "só podia ser o avô - Aivados é a terra onde ele nasceu. Isto só pode ser coisa dele."

"Só temos uma maneira de saber", disse a Amélia, "vamos telefonar-lhe."

Os dois irmãos desceram do sótão e a Amélia, pegando no telefone, registou o número do avô que, instantes depois respondia do outro lado:

"Estou, quem fala?"

"È a Amélia, a sua neta."

"Ah! é a minha querida neta. E o teu irmão, o João, está bom? Mas diz lá, o avô só veio há três dias para os Aivados e já estás com saudades dele?"

"O João está aqui ao pé de mim e estamos a telefonar-lhe porque descobrimos no sótão um baú tendo lá dentro um mapa que fala em Messejana, Panóias, Estação de Ourique, Aivados e num tesouro. O avô sabe alguma coisa disto? O baú era seu? Foi o avô que o colocou aqui no sótão e ..."

"Mais devagar Amélia e uma pergunta de cada vez," disse o avô do outro lado do telefone. "Já vi que encontraram o meu baú. É uma história muito comprida que não dá para contar pelo telefone. Sim, há um mapa que fala de um tesouro, mas eu quando o encontrei não lhe liguei muita importância e, depois, como arranjei emprego na Lisnave e tive de deixar os Aivados em dois dias também não tive tempo para procurar."

"Mas o tesouro existe mesmo?" Perguntou a Amélia.

"Não sei, provavelmente não", disse o avô. "Mas não se perde nada em procurá-lo. Se os meus queridos netos quiserem passar o resto do mês de Junho aqui nos Aivados, com o avô, na casa da minha irmã e vossa tia Antónia, prometo ajudar-vos a descobrir esse tesouro."

"O avô fazia mesmo isso?" Quase gritou a Amélia animada de grande entusiasmo.

"Seria um grande prazer", disse o avô, e continuou: "primeiro porque 50 anos depois poderia, por fim, descobrir esse mistério que me caiu nas mãos. Segundo porque passaria uns dias só convosco, sem os vossos pais por perto que muitas vezes parecem que já são velhos antes do tempo. Façam a vossa parte de convencê-los a vos deixarem vir para o Alentejo que eu farei a minha."

"Obrigado avô, és o melhor avô do mundo", disse a Amélia dando pulos de contente.

"Que aconteceu, Amélia? Conta."

"O avô convidou-nos a irmos para os Aivados passar com ele e com a tia Antónia os últimos dias de Junho e ele ajuda-nos a descobrir o tesouro, só temos de convencer os pais."

Nessa tarde, bombardeados pelos pedidos dos dois irmãos, que nunca mencionaram qualquer tesouro, e pelos telefonemas do avô, onde a referência a esse assunto também nunca esteve presente, os pais de João e Amélia, embora com muita relutância, uma vez que o Senhor Francisco Amado, assim se chamava o avô dos nossos heróis, e a irmã Antónia já eram bastante idosos, os pais do João e da Amélia lá concordaram em deixá-los viajar para os Aivados. Ficou assente que tal se faria no dia seguinte, no autocarro, da manhã.

Depois de emalarem tudo o que tinham de trazer, incluindo as suas bicicletas, o João e a Amélia foram logo para a cama. Mas a excitação era tão grande que mal dormiram, pelo que o trepidar do autocarro os fez entrar num sono profundo logo a seguir à passagem por Setúbal. Quando acordaram em Castro Verde, meio estremunhados, já o avô os esperava com um táxi onde custou a caber toda a bagagem que traziam.

Chegados aos Aivados e já depois de almoçados, avô e netos sentaram-se à sombra do alpendre do quintal e quais detectives iniciaram a primeira conversa que os iria levar à descoberta do tesouro, como iremos ver mais tarde.

"Avô", disse o João, "mas que mapa é este e que fazia ele no sótão da nossa casa."

"Prestem pois atenção que eu vou-lhes contar o que aconteceu", assim começou o avô o seu relato. "Uns dias antes de ser chamado para trabalhar na Lisnave andava eu a derrubar as paredes duma casa que o meu primo Leonardo tinha no quintal, quando no meio da terra e das pedras surgiu uma caixa de lata. Peguei nela, abri-a e vi o mapa que tu e Amélia viram. E assim que olhei percebi logo que se tratava do mapa da herdade dos Aivados que é propriedade do povo aqui da terra."

"Espera um pouco avô, para ver se eu percebo", interrompeu a Amélia. "O que é isso de uma herdade?"

"Chama-se herdade a uma porção grande de terra com árvores, pastagens e terras de semear, portanto com muitos hectares - e um hectare vocês sabem o que é? aprenderam na escola, são dez mil metros quadrados, mais ou menos um campo de futebol", explicou o avô Francisco Amado.

"E que significa isso da herdade dos Aivados ser do povo dos Aivados", perguntou o João.

"Quer dizer que os donos, os proprietários desta herdade não são o Manuel, nem o Joaquim, nem o Pedro, nem a empresa X ou Y, mas sim todos os habitantes aqui dos Aivados, portanto o povo dos Aivados", respondeu o avô.

"Mas uma herdade, que são muitos hectares de terra, como avô disse, deve ser uma coisa muito cara. Como as pessoas que aqui vivem não são ricas onde foram elas buscar o dinheiro para comprar a herdade?" Perguntou a Amélia.

"Não a compraram, foi-lhes dada", disse o avô.

"Dada? Mas quem oferece algo de tão valioso?" Interrogou-se o João.

"É uma história complicada e longa", referiu o avô.

"Conta, avô", pediu a Amélia.

Então o avô, recostando-se melhor na cadeira, iniciou a história que quase todos habitantes mais velhos dos Aivados conheciam. "Conta-se que há muitos anos, há mais de 500 anos, uma Senhora da Nobreza, chamada Maria de Lemos, teria deixado, por sua morte, um terreno com cerca de 400 hectares ao povo dos Aivados. No entanto, nunca se encontrou qualquer documento que comprovasse esta doação."

"Se não se encontrou esse documento, então como é que a herdade é do povo dos Aivados", perguntou o João.

"Porque existem dois outros documentos que mostram que o terreno é do povo dos Aivados. São duas decisões de tribunais, uma de 1562, era rei de Portugal D. Sebastião."

"O Rei que morreu ainda novo na batalha de Alcácer Quibir, no Norte de África", interrompeu a Amélia que era boa aluna a história.

"Sim, tens razão, e a segunda decisão do tribunal é de 1655", completou o avô.

"E quem era rei de Portugal nesta altura?" Perguntou o João.

"Eu sei, eu sei, era D. João IV, que foi rei depois de Portugal ter sido governado por três reis espanhóis, todos de nome Filipe", explicou a Amélia que não perdia uma oportunidade para mostrar os seus conhecimentos em história.

"É verdade minha neta, mas por hoje chega de conversa. Aproveitem a tarde para um passeio de bicicleta. Amanhã temos um grande dia à nossa frente e talvez consigamos descobrir o mistério do mapa."

Desta vez, em casa da tia Antónia, os dois irmãos dormiram de um sono só. Quando se sentaram à mesa para tomar o pequeno-almoço já o avô aí se encontrava com o mapa estendido em cima da mesa.

Terminada a primeira refeição do dia, o avô falou:

"O sinal no mapa que indica o tesouro parece ficar não muito longe da Estação de Ourique."

Amélia, que conhecia mal os Aivados e o território em redor, interrompeu o avô para perguntar: "E a Estação e Ourique fica muito longe dos Aivados?"

"Não, fica perto", respondeu o avô e continuou: "é um povoado que cresceu em redor da estação de caminho-de-ferro que servia a vila de Ourique. Hoje já não passam lá comboios, mas no passado foi importante. Era por esta estação que chegavam adubos, charruas e outras alfaias agrícolas e saía o trigo produzido na região."

"E a herdade dos Aivados vai até a essa povoação", perguntou o João.

"Sim, vai. Como já vos disse a área da herdade dos Aivados era grande, se bem que tivesse ficado mais pequena durante o século XX, até 1975", respondeu o avô.

"Mais pequena, mas como?" Encolheu?" Perguntou a Amélia.

"Não, não encolheu, que as terras não encolhem, o que aconteceu, minha neta, foi que alguns proprietários de terras próximas, que tinham arrendado pastagens na herdade dos Aivados, com o tempo fizeram suas essas terras, casos dos proprietários das herdades do Carrascal e do Monte Novo."

"Mas isso foi uma atitude ilegal", exclamou o João. "E o povo dos Aivados não fez nada?"

"No tempo da ditadura em que o país viveu, de 1926 até 1974, era difícil fazer alguma coisa contra os poderosos, mas depois do 25 de Abril grande parte destas terras foram recuperadas pelo povo dos Aivados", explicou o avô, para logo acrescentar: "mas deixemos de conversa e vamos ver onde nos leva o mapa."

Saíram os três de casa e entraram na carrinha do Senhor Francisco Amado, que ainda conduzia, mas só em redor dos Aivados, e rumaram à Estação de Ourique. Aqui chegados estacionaram o veículo no largo da estação e, de mapa na mão, avô e netos seguiram decididamente à descoberta do tesouro.~

João, olhando com atenção para o mapa, comentou:

"Já repararam que no local onde está assinalado o X passa uma linha azul. Só temos de descobrir o que significa e segui-la."

A Amélia que, para além de história, também era boa aluna a geografia, foi rápida na resposta: "a linha azul representa uma linha de água, mas como estamos no Verão está tudo seco, vai ser difícil descobri-la."

O avô, limpando o suor da testa com um lenço, uma vez que o calor de Junho já se fazia sentir, falou, por fim:

"Penso que a linha de água que a Amélia se referia é esta. Não tem água, mas o barranco está cá. Vamos segui-lo e veremos onde nos leva."

Dito isto, avô e netos continuaram a sua viagem de descoberta. Ainda não tinham andado aí uns 20 minutos, quando diante deles surge uma casa junto ao barranco.

"Que habitação é esta?" Perguntou o João?

"É um moinho de água, mais conhecido por azenha", respondeu o avô. E este existe aqui há muitos anos." E continuando: "como é que eu não vi logo isto."

"Não viste o quê, avô?" Perguntou a Amélia.

"Não vi, não me apercebi, que o X sinalizado no mapa está no mesmo local onde se encontra a azenha", respondeu o avô.

"Mas uma azenha não é um tesouro", disse o João.

"Mas pode o tesouro estar dentro do moinho", sugeriu a Amélia.

"Pois pode", concordou o avô.

"Então vamos procurar", disse o João, dirigindo-se para a porta do moinho que se abriu perante a pressão exercida pelo nosso detective.

Avô e netos, na hora seguinte, procuraram por todo o lado, dentro e fora da azenha, qualquer indício, qualquer pista que os levasse à descoberta do tesouro.

Não encontrando nada e cansados, sentaram-se no exterior do moinho, à sombra de uma árvore que aí existia.

"Se houve aqui algum tesouro ele já desapareceu há muito", observou o João.

"Ou então alguém já o encontrou", disse a Amélia.

"Ou não o procurámos bem", disse, por seu turno, o avô.

E o silêncio caiu sobre avô e netos até que Amélia, como se tivesse lembrado de alguma coisa, perguntou:

"Avô, esta manhã, depois do pequeno-almoço disseste que o povo dos Aivados tinha recuperado, em 1975, a terra tirada durante a ditadura. Como é que isso foi?"

"Foi assim", e o avô continuou: "Depois do golpe de Estado Militar que pôs fim á ditadura, em 25 de Abril de 1974, o povo veio para a rua exigir melhores condições de vida e nesse processo revolucionário, o povo dos Aivados, no dia 20 de Abril de 1975, juntou-se na povoação e decidiu ir recuperar as terras que lhe tinham sido retiradas pelos proprietários das herdades do Carrascal e do Monte Novo."

"Mas isso foi uma luta?" Perguntou o João?

"Não, não foi luta nenhuma, foi antes uma grande festa onde esteve presente muita gente. A luta veio depois, nos tribunais", respondeu o avô.

"E como foi isso", perguntou desta vez a Amélia.

"Os donos do Monte do Carrascal foram a tribunal reclamar, dizendo que as terras eram deles, mas o povo dos Aivados apresentou os documentos que provavam o contrário e a razão foi-lhes dada. Mas foi uma luta muito longa. Começou em 1975 e só acabou 16 anos depois, em 1991", explicou o Francisco Amado.

"Mas avô, há uma coisa que não percebo. Que faz o povo dos Aivados com esta herdade que é de todos?" Perguntou o João.

"Ao longo dos anos foi-se seguindo uma certa tradição. Há um grupo de pessoas eleitas pelo povo que gere as terras. O dinheiro proveniente dessa gestão, parte dele resultante da venda de pastagens, é aplicado em melhoramentos na povoação e na ajuda das pessoas que habitam nos Aivados."

"E que tipo de ajuda é essa", voltou a perguntar o João.

"São várias, como por exemplo ajudas em dinheiro para a compra de livros para as crianças que andam na escola ..."

O avô ia continuar quando a Amélia o interrompeu:

"João, avô, já repararam naquela parede de pedra da azenha. Há nela um quadrado um pouco diferente do resto. Parece que não é a mesma pedra. E se fôssemos lá ver". E nisto levantou-se, no que foi seguida pelo irmão e pelo avô.

"És boa observadora minha neta", disse o avô, que abrindo o canivete que trazia sempre consigo, começou a retirar a argamassa que unia as pequenas lajes. Passado algum tempo, depois de retiradas algumas pedras, João gritou: "Avô, Amélia, estão a ver, aí no buraco está uma caixa escura."

Muito lentamente, para não se magoar, o João retirou da parede uma caixa de metal preto, pousando-a no chão com cuidado, como se tratasse de algo muito precioso e que, portanto, se pudesse partir.

"É o tesouro, é o tesouro", gritava Amélia, vibrando de excitação e alegria.

O avô, com um pouco de pressão do canivete, desbloqueou a fechadura, abriu a tampa da caixa e retirou lá de dentro um pequeno maço de folhas que, pela aparência, deviam ser de pergaminho. Abriu-as, mas não conseguiu ler nada do que estava lá escrito. A única coisa que percebeu foi um nome: Maria de Lemos, que leu em voz alta.

Os dois irmãos entreolharam-se. A excitação tinha dado lugar ao desânimo.

No entanto, de repente, fez-se luz.

Maria Lemos era o nome da Senhora da Nobreza que há mais de 500 nos tinha doado a herdade ao povo dos Aivados. O tesouro era, afinal, o documento fundador da aldeia comunitária dos Aivados que pela força e o querer dos seus habitantes chegou até aos dias de hoje.

1· Esta história faz parte do acolhimento que o Museu da Ruralidade faz no pólo dos Aivados às turmas dos estabelecimentos de ensino dos 1.º, 2.º e 3.º ciclos do Ensino Básico que o visitam.

Marcações pelo telefone: 286 915 329



O BATER DO TEAR

História para miúdos e graúdos sobre tecelagem (1)

Constantino Piçarra (IHC/UNL) 

A história que vos vou contar aconteceu no tempo dos vossos avós e bisavós. Num tempo em que não havia telemóvel, nem computador, nem Internet, nem televisão. Só havia rádio e só os mais ricos é que o possuíam. Era um tempo muito diferente dos dias de hoje. Nem todos os meninos e meninas iam à escola e, no Verão, as famílias, à noite, depois de jantar, sentavam-se à porta de casa e conversavam entre si e com as famílias vizinhas. No Inverno, na altura do frio e da chuva, era à volta da chaminé que os serões se passavam, com o calor do fogo a misturar-se com o frio que entrava pelas frestas das telhas do telhado e das portas e janelas.

António, mais conhecido pelo Toino do Queimado, um dos heróis da nossa história, vivia no Lombador e tinha 11 anos. Era magro e mais alto que os rapazes da sua idade. Apesar de andar quase sempre descalço, uma vez que o dinheiro em casa só dava para comprar umas botas pelo Inverno, era o campeão das corridas e tinha grande habilidade nos jogos do berlinde e do pião.

Na casa do Toino, constituída por quatro divisões, casa de entrada, uma cozinha com chaminé e dois quartos, tudo chão de terra batida pintado com almagre para não levantar pó, viviam seis pessoas: pai e mãe e quatro filhos. Com excepção do Toino, o mais novo dos irmãos, que tinha feito a escola primária, todos os outros membros da família não sabiam ler nem escrever. Eram assim as famílias da maior parte dos trabalhadores do campo em finais da década de 1950, que é quando se passa a nossa história. Um dos quartos era dos pais e no outro dormiam os quatro rapazes em duas camas separadas por um estreito corredor. Os quartos, que davam para a casa de entrada, em vez de porta possuíam uma cortina. A iluminação fazia-se a candeeiro de petróleo e a confecção dos alimentos realizava-se em panelas de barro que se colocavam no chão junto ao lume de lenha. Algumas famílias, com um pouco mais de posses, possuíam fogão a petróleo de uma só chama, o que permitia fazer fritos com mais facilidade. A água para beber, fazer as refeições e lavar a cara vinha de uma bica que existia no largo da terra, trazida em cântaros de barro pelo Toino ou pela mãe, uma vez que o pai e os irmãos eram pastores pelo que quase sempre estavam no campo. Como não havia casa de banho a lavagem do corpo só acontecia nos períodos de festa e fazia-se num grande alguidar de barro que se colocava no centro da cozinha. As necessidades fisiológicas faziam-se numa azinhaga junto ao casario ou na estrumeira existente a um canto do quintal, junto à capoeira das galinhas.

No fundo da rua do Toino morava a Joana da Miquelina, também com 11 anos de idade e com a quarta classe feita há pouco tempo. A Joana não tinha nascido no Lombador. Tinha nascido no Algarve, mas vivia nesta localidade havia três anos. Os pais tinham vindo fazer a ceifa, mas as condições de alojamento oferecidas pelo lavrador da Sete eram muito más. Homens e mulheres tinham sido instalados num enorme celeiro sem ventilação, portanto muito quente, onde as pulgas atacavam durante toda a noite. Desta forma, os mais afoitos pegavam numa manta e dormiam ao relento tendo por tecto as estrelas e por companhia o cantar das cigarras. Um primo dos pais da Joana, que vivia no Lombador, sabendo destas condições e tendo uma habitação disponível ofereceu-a a estes algarvios para a utilizarem durante a campanha da ceifa. Como não tinham emprego certo no Algarve a família da Joana resolveu ficar nesta aldeia trazendo a família para o Lombador onde os homens passaram a exercer a atividade de pastores.

Toino e Joana depressa se conheceram e se tornaram grandes amigos. Brincavam juntos na aldeia e davam grandes passeios pelos campos em redor fazendo todos os dias novas descobertas: pássaros que não tinham visto, flores que eram uma novidade.

Num tempo em que rapazes e raparigas cresciam separados, havendo mesmo, nas escolas com muitos alunos, classes só para meninos e classes só para meninas, esta amizade entre o Toino e a Joana não era bem vista nem pelos pais de um nem pelos de outra. Mas os nossos heróis, gostavam de estar juntos e sempre que podiam desenvolviam as suas brincadeiras só interrompidas quando as mães os chamavam para fazerem qualquer recado ou para tomarem as refeições.

Nas suas brincadeiras, o Toino e a Joana tinham descoberto uma casa no final da aldeia, onde pela porta da rua entreaberta, nos finais das tardes de Primavera e Verão, chegavam à rua uns sons esquisitos, como se duas tábuas batessem uma na outra a um ritmo constante, pouco espaçado no tempo. Isto intrigava os nossos dois amigos, mas não se aproximavam para ver o que se passava. Uma vez tinham tentado fazê-lo, mas no momento em que chegavam junto à porta para espreitar, esta tinha-se aberto, saindo de lá de dentro uma mulher já idosa, toda vestida de negro, com um lenço também preto na cabeça que lhes gritou: "o que é que os meninos estão aqui a fazer? Seus grandes malandros". A senhora Prudência, assim se chamava esta velhota, falou assim porque também ela ficou assustada. Não esperava a presença destes nossos amigos já quase com as cabeças dentro de casa.

O tempo passou e o Toino e a Joana evitavam aproximar-se da casa da "tia Prudência". No entanto, um dia à tarde, na taberna do José Faustino, o Toino escutou uma conversa entre o pai e outros homens em que falavam ir no dia seguinte com o gado para o quintal da tia Prudência. Estava-se no mês de Abril. Toino, assim que isto ouviu, correu para a casa da sua amiga Joana. Produziu o assobio combinado e, pouco tempo depois, a Joana surgia à porta do quintal, com o seu gato branco ao colo, perguntando: "que se passa Toino? Nós não tínhamos combinado só nos encontramos amanhã, para irmos ver beber os passarinhos na fonte do ripado?" "Sim", concordou o Toino, "mas é que amanhã, de manhã, vai acontecer qualquer coisa no quintal da "tia Prudência". Ouvi na taberna o meu pai e outros homens a falar em irem para lá com o gado. E se nós fossemos ver o que se vai passar?

A Joana concordou com a proposta do Toino e, à hora combinada, ainda o sol não tinha nascido, os dois amigos encontraram-se a meio da rua depois de terem saído sorrateiramente de casa sem que ninguém tivesse dado por isso. Juntos, colados às paredes, dirigiram-se para a casa da "tia Prudência", rodearam-na e entraram no quintal através de um buraco que fizeram por entre o canavial que servia de muro. Dentro do quintal esgueiraram-se para o telheiro e esconderam-se no sobrado de madeira por entre os fardos de palha. Daqui tinham uma vista ampla sobre o quintal que da posição em que se encontravam parecia ainda maior.

Passado pouco tempo a portão do quintal abriu-se e, perante o espanto do Toino e da Joana o pai desta entrou no recinto, seguido do filho mais velho, o Ricardo, tocando parte do rebanho de ovelhas de que eram, respectivamente "moiral" (maioral) e ajuda. Logo a seguir entrou um grupo de homens que, mais tarde, os nossos amigos vieram a perceber que eram os tosquiadores.

Tesoura de Tosquiar

Estiraçados no sobrado e de cotovelos apoiados na madeira do estrado, Toino e Joana observaram durante toda essa manhã de Abril o trabalho de tosquia que se realizava todos os anos entre os meses de Março e Maio.

Presa as patas dianteiras e traseiras das ovelhas, os tosquiadores, armados das suas enormes tesouras, com perícia lá iam retirando a lã dos animais, deixando-os mais leves para melhor enfrentarem os rigores do Verão que estava a chegar. Retirada a lã, esta era ensacada sem que existisse mistura de cores: lã branca para um lado, lã castanha para outro.

Entusiasmados que estavam com o que iam observando, o Toino e a Joana não deram conta que as horas tinham passado e que em casa alguém já tinha dado, de certeza, pela falta deles. Iam comentar um com o outro este pensamento, quando vêem a mãe da Joana entrar no quintal com ar de aflição perguntando se tinham visto a filha que desde a noite passada que não sabia dela. Esta aparição sobressaltou tanto os nossos amigos que, com a pressa que iniciaram a descida do sobrado, falharam dois degraus da escada que a ele conduzia vindo a estatelarem-se, com algum estrondo e por entre gritos de aflição, no chão do telheiro.

Doridos da queda, com medo das mães, pois a mãe do Toino também tinha chegado, ainda com mais medo ficaram quando surgiu a "tia Prudência" que, alertada pela zaragata, que entretanto se desenvolveu entre mães e filhos, apareceu no quintal para ver o que se passava. Assim que viu os nossos heróis, a "tia Prudência", com semblante carregado, assim falou: "Mas afinal o que é que o menino e a menina querem da minha casa? Não há muito tempo apanhei-os a espreitar à minha porta e agora vejo que estiveram escondidos no telheiro do meu quintal, toda uma manhã sem que as vossas mães soubessem do vosso paradeiro. O que é que os atrai na minha casa? Vá, respondam!"

A medo, a Joana lá se atreveu a dizer: "Queríamos descobrir o mistério que há na sua casa, pois nos dias de Primavera e Verão, ao fim da tarde, há um barulho esquisito que vem da sua habitação e que se ouve na rua, parecem duas tábuas a bater uma na outra". E o Toino completou: "e hoje viemos ver o que iria acontecer aqui no seu quintal porque ontem na taberna do José Faustino ouvi uma conversa muito esquisita entre o meu pai e outros homens onde falavam vir ao seu quintal com o rebanho".

A "tia Prudência", perante estas explicações e com um sorriso já no rosto, o que deixou mais descansados os nossos amigos, disse-lhes então: "Muito bem, vamos então desfazer o mistério. Agora vão com as vossas mães e ao fim da tarde venham ter comigo à minha casa".

Em alvoroço os nossos heróis mal almoçaram. No entanto, a tarde parecia não ter mais fim. Quando o sol, nesse dia de Abril, começou a perder intensidade, o Toino e a Joana, dominados pela ansiedade, chegaram, por fim, à casa da "tia Prudência".Desta vez, apesar da porta se encontrar semiaberta, não tentaram espreitar, antes batendo nela com a aldraba que dela pendia sensivelmente pelo meio.

Durante minutos, que lhes pareceram horas, não ouviram qualquer movimento ou barulho no interior da habitação. Quando, pesarosos, já se preparavam para iniciarem a viagem de regresso eis que se começa a ouvir, com enorme nitidez, o barulho que tanto os intrigava e inquietava, ao mesmo tempo que a voz da "tia Prudência" se fazia ouvir: "entrem, meninos, sigam a minha voz".

Com algum receio, com a Joana à frente, que nestas coisas da descoberta do desconhecido era mais temerária, os nossos amigos empurraram a porta, entraram na "casa da fora" e seguiram a voz da "tia Prudência" que dizia:" é por aqui, é por aqui". E assim chegaram ao quarto com janela para a rua, que à "casa de fora" se ligava por um portal tapado por uma cortina de chita vermelha. Desviado o tecido que servia de porta, eis que surge perante os olhos do Toino e da Joana um "aparelho" de madeira onde se enroscavam vários fios de lã.

Tear

Sentada numa extremidade deste "aparelho" encontrava-se a "tia Prudência" que, indicando aos nossos heróis duas cadeiras pequenas para que nelas se sentassem, assim lhes falou: Isto que estão a ver é um tear. Nele se fazem diversas peças de lã, sobretudo mantas. É neste tear que trabalho todas as tardes dos dias de Primavera e Verão que são os dias mais longos do ano. E o barulho que vos tem intrigado é a "Queixa" a bater na teia de encontro ao que já está tecido".

Toino e Joana entreolharam-se. Estava explicado o mistério, mas a curiosidade mantinha-se.

Toino foi o primeiro a falar: - "onde é que a "tia Prudência" aprendeu a trabalhar no tear?

"Aprendi com a minha mãe que, por sua vez, aprendeu com a mãe dela e esta com a minha bisavó. Este saber é muito antigo no Lombador e nas terras em redor, conhecidas por Campos de Ourique, ricas em rebanhos de ovelhas. Muitos deles até vinham da Serra da Estrela".

"E o que é que os rebanhos de ovelhas têm a ver com as mantas que a "tia Prudência" faz no tear?" - Perguntou a Joana que não estava a perceber a relação entre uma coisa e outra.

A "tia Prudência" sorriu para os nossos amigos, veio sentar-se ao pé deles, e com o tom de voz dos avós que, neste tempo, contavam junto ao lume de lenha longas histórias aos netos nas igualmente noites longas de Inverno, assim falou: "Sabem, meninos, a lã que, com o auxílio deste tear, se transforma em mantas provém das ovelhas e carneiros". "Mas como é isso possível?", interrompeu o Toino? "Escuta com atenção que vais entender tudo muito bem", disse a "tia Prudência" e continuou: "Durante a Primavera procede-se à tosquia, que consiste em retirar a lã de ovelhas e carneiros, e ao armazenamento desta em sacos, que foi o que o menino e a menina viram esta manhã, escondidos no meu quintal.

Joana não se conteve: "não percebo, eu vi essa lã que são pastas, mas como é que ela se transforma em fio para entrar aqui no tear?"

"Não sejas impaciente", retorquiu a "tia Prudência, "que eu já explico" e continuou: "esta lã da tosquia é sujeita a vários tratamentos. Primeiro é sovada". E aqui a Joana interrompeu: "leva uma sova como aquelas que a minha mãe me dá quando pensa que eu me porto mal?"

Sovar a Lã

"È parecido", respondeu a "tia Prudência" a rir e prosseguiu: primeiro lava-se a lã com água muito quente, enxaguando-se de seguida em água fria. Findo este trabalho estende-se a lã ao sol para, depois de seca, ser batida com uma vara de loendro num recinto aberto".

"E depois, o que acontece?", perguntou o Toino.

"Depois é cremeada, continuou a "tia Prudência", o que significa abrir a lã com os dedos. E a esta tarefa segue-se o azeitamento, ou seja, a de colocar azeite nas tiras de lã".

"E depois o que acontece?", perguntou o Toino cheio de curiosidade.

"Depois", retorquiu a "tia Prudência", "passa-se à fase da cardação".

"O que é isso?", interrompeu a Joana.

Cardar a Lã

"Trata-se de desembaraçar a lã, transformando-a em fios finos, com o auxílio de uma escova feita de arames curtos", explicou pacientemente a "tia Prudência". E não se detendo acrescentou: "Feito isto entra-se na fase da fiação onde, com a ajuda da roda de fiar, a lã se transforma em fio, o qual antes de chegar ao tear passa pela urdidura onde os fios são separados um a um".

Roda de Fiar

"Como é que a "tia Prudência" sabe tudo isto?", perguntou o Toino.

"Primeiro fui vendo como a minha mãe e as minhas tias faziam e, depois, fui eu própria fazendo.

"E há muita gente que sabe tecer como "a tia Prudência", aqui no Lombador?", perguntou a Joana.

"Há algumas mulheres que sabem, mas são tão velhas como eu. O que eu gostava mesmo é que este saber nunca se perdesse, que não morresse connosco. Portanto, vou directa à principal razão que me levou a chamá-los aqui. Tenho uma proposta para vos fazer e na vossa resposta não se preocupem com o que os vossos pais poderão pensar que eu já falei com eles. Querem aprender toda esta arte de transformar a lã em fio e o fio em mantas, manobrando o tear? Se quiserem eu estou disponível para vos ensinar".

Ao ouvirem estas palavras proferidas pela "tia Prudência" os olhos do Toino e da Joana brilharam de alegria. Apertaram a mão de um na mão do outro e, em uníssono, responderam SIM.

Com esta decisão do Toino e da Joana ficou garantida por mais uma geração o conhecimento da arte de tecer no Alentejo a Sul de Entradas, em terras dos Campos de Ourique, em terras do Campo Branco.

Não sabemos o que o Toino e a Joana fizeram para passar os saberes aprendidos com a "tia Prudência" à geração que lhes sucedeu. O que sabemos é que esta arte milenar chegou até hoje, até aos anos 20 do século XXI e que está aqui presente no Museu do Lombador para que chegue até onde quiserem os Toinos e as Joanas deste tempo que é o vosso.

(1) - Esta história faz parte do acolhimento que o Museu da Ruralidade faz no seu polo do Lombador, dedicado à tecelagem, a todas as crianças que o visitam em coletivo, em regra como resultado de visitas organizadas por estabelecimentos de ensino dos 1.º e 2.º ciclos. A segunda parte do acolhimento é constituída por um jogo de descoberta. No final cada visitante levará ainda um pequeno "guia de estudo" o qual tem por objetivo orientar a pesquisa e o estudo dos alunos sobre a temática do Museu em situação de aula.





A VINHA E O VINHO DE TALHA

 Constantino Piçarra (IHC/UNL)

O cultivo da vinha em Portugal remonta a tempos muito antigos. No séc. VII a.C. já os gregos o fazem em território peninsular, atividade que sofre um forte desenvolvimento no período de dominação romana, consolidando-se desde aí até aos dias de hoje.

O Alentejo que, segundo António Augusto de Aguiar, é considerado terra de "péssimo vinho", surge, a partir de 1856, com significado no mercado de vinhos, uma vez que escapa, nesta data, à praga de Oídio que se abate sobre os vinhedos do país, o que tem implicações no desenvolvimento da cultura da vinha na região.

Assim, no que se refere ao distrito de Beja, na Exposição Agrícola de Lisboa, em 1884, aparecem representados, com os seus vinhos, 11 concelhos, excepções de Castro Verde, Barrancos e Mértola, e onde sobressai, como zona mais vinhateira, o conjunto dos concelhos de Beja, Cuba, Ferreira do Alentejo e Vidigueira.


Mosaico e moedas romanas referentes à vinha e produção de vinho.

Tomando em consideração as Cartas de Distribuição da Vinha de 1889 e 1958 verifica-se que, no conjunto dos concelhos de Alvito, Cuba e Vidigueira, de finais do séc. XIX para meados do séc. XX, há uma redução da área da vinha em 1.344 hectares (44,3%), realidade que pode ser generalizada a todo o Baixo Alentejo, e a qual se explica, em grande parte, pela campanha do trigo, iniciada em 1929, que integra no cultivo deste cereal muitas terras até então ocupadas por vinhedos.

Em 1958, a área de vinha no distrito de Beja é de 6.602 hectares, 1,7% do total do Continente, com predomínio da vinha estreme (1) sobre a vinha consorciada (2). O tratamento agrícola da vinha não difere muito do realizado em finais do século XIX, o mesmo acontecendo com a produção de vinho, que é feita em adegas de talha de barro, prática que chega até ao século XXI.

(1) - Vinha estreme - Vinha com árvores dispersas no seu interior (40 ou menos árvores por hectare).

(2) - Vinha consorciada - Vinha associada a outras culturas.


Vinha velha, início do século XX, Vidigueira.

O TRABALHO NA VINHA

A filoxera chega a Portugal pela região do Douro em 1867, alastrando-se, posteriormente, pelas vinhas do país. A solução encontrada para evitar esta praga foi enxertar as castas europeias no bacelo americano, raízes bravas, prática ainda corrente.

Fases da plantação e enxertia da vinha:

1.ª - Preparação do terreno que, antes da mecanização, se faz através da cava, tarefa realizada a braço com o auxílio de pesados "alferces", enxada com uma lâmina de cerca de 50 cm de comprimento;

1.ª - Entre Março e Abril o bacelo bravo, também conhecido por "cavalo", é preparado e plantado;

2.ª - No ano seguinte, pela mesma altura, após ter criado raízes e desenvolvido uma copa, esta é retirada;

3.ª - O garfo da casta em que se pretende enxertar a vinha é cortado em cunha e encaixado numa fenda feita no bacelo bravo, ou seja no "cavalo", atando-se as duas partes com "junça";

4.ª - Por fim, cobre-se com terra ou areia a junção feita entre bacelo bravo e manso.

A poda:

A poda da vinha faz-se no período de repouso vegetativo da planta e consiste no corte das varas com o objectivo de estimular o crescimento dos gnomos responsáveis pela produção futura. No Alentejo esta tarefa realiza-se, em regra, de Dezembro a finais de Fevereiro.

Poda da vinha

O tratamento químico

Da primavera à vindima, que ocorre no mês de Setembro, é o tempo de se evitar as pragas e doenças da vinha, como o míldio e o oídio. Tradicionalmente, ou seja, até finais dos anos 60 do século passado, o tratamento dos vinhedos faz-se através da chamada "calda bordalesa", mistura de sulfato de cobre com cal em pedra, enxofre e água, aplicada com recurso à máquina de sulfatar.

Cestos de vime e máquina de sulfatar

A Vindima

Amadurecida a uva, procede-se à vindima e ao transporte da uva para a adega, o que até à generalização da mecanização agrícola se faz em grandes cestos de vime colocados em carros puxados por muares.

Com excepção da vindima e da apanha das vides resultantes da poda, todo o trabalho nas vinhas é feito por homens. Até 1961, ano em que os trabalhadores agrícolas do Alentejo conquistam, através da greve, a jornada de 8 horas, trabalha-se do nascer ao pôr-do-sol por pouco salário. Em 1973, no distrito de Beja, o salário médio dos assalariados rurais ainda é de 80$00 (€0,40) por dia para os homens e 45$00 (€0,22) para as mulheres.

Vindima

A TALHA

A talha é feita em barro silicioso que depois de cozido fica rijo. A vinificação feita em talha, ainda hoje corrente no distrito de Beja, é uma herança da civilização romana. Antes de nela se fabricar o vinho, como o barro é poroso, é preciso diminuir-lhe a permeabilidade, o que se faz com pez loiro, tarefa que se desenvolve em cinco fases:

1.ª - Coloca-se a talha de boca para baixo assente em quatro pedras e, entre estas, acende-se uma pequena fogueira;

2.ª - Enquanto a talha fica a aquecer derrete-se num tacho a quantidade de pez loiro suficiente para barrá-la;

3.ª - Finalizadas estas duas tarefas, endireita-se a talha aquecida e lança-se no seu interior o pez derretido;

4.ª - Em seguida a talha é deitada em chão preparado para esse efeito, rebolando nele, enquanto, em simultâneo, com um bocado de cortiça na ponta duma vara, se distribui o pez por igual pelo seu interior;

5.ª - Antes do pez solidificar, e enquanto está mole, alisa-se o interior da talha até este apresentar uma espécie de capa de polimento.

  Talhas

A ADEGA

Chegadas as uvas à adega inicia-se, de imediato, o processo do seu esmagamento. Em tempos muito recuados, até à introdução do moinho manual, as uvas são desengaçadas em ripadeiras ou cirandas de madeira e pisadas por homens no solo da adega, escorrendo a mistura que daqui resulta para uma cisterna ou dorna.

Posteriormente, este mosto, constituído por sumo, polpas, peles e engaços, é lançado com o auxílio de "canecos" no interior da talha, condicionando-se nesta fase o grau alcoólico futuro do vinho através da adição de água ou de aguardente vínica.

Concluída esta trasfega que não deve encher totalmente a talha, pois a fermentação pode deitar para fora parte do mosto, é necessário mexer diariamente, pelo menos duas vezes por dia, a massa que se encontra dentro da talha, o que se faz com um rodo.

Se o tempo ajudar, fazendo frio, cerca de 45 dias depois há vinho novo.

Feito o vinho, este é retirado da talha por uma torneira situada na sua parte inferior e colocado numa outra talha, limpa de qualquer mosto, condição necessária à manutenção da qualidade do vinho. A balsa que fica também é retirada, sendo espremida numa prensa a fim de se aproveitar o vinho que ainda aí existe, o chamado "vinho da esprema", de qualidade inferior, o qual, depois de recolhido numa vasilha de barro, é, por sua vez, lançado num pote ou talha onde se encontra uma balsa que se decide não espremer.

Ao estagiar nesta balsa, chamada "mãe", o "vinho da esprema" adquire o travo e a tonalidade do vinho original parecendo ter a qualidade que não tem.

Embora apreciado na adega, o vinho é, sobretudo, consumido na taberna, local onde os assalariados rurais bebem, no final de cada dia, o chamado "vinho do trabalho" e os homens das comunidades rurais do Alentejo o saboreiam, muitas vezes de forma bastante intensa.

Adega tradicional

A TABERNA

A taberna era um espaço totalmente masculino, local de convívio entre os homens no final de cada dia de trabalho e nos poucos dias de descanso. Com pouco movimento durante o dia, agitava-se de vida a partir do fim da tarde. Do seu interior, quando as várias rodadas já tinham desinibido vontades, não poucas vezes, faziam-se ouvir vozes potentes entoando a moda.

Espaço de confraternização e discussão sobre as dificuldades dos dias, mas também de alienação, a vida de taberna foi bastante criticada durante os primeiros anos do século XX pelas associações de trabalhadores rurais do Alentejo que viam nela um impedimento à organização dos trabalhadores, pelo que reivindicavam o seu encerramento no início da noite. Como o vinho de talha também a taberna chegou até aos nossos dias, duas realidades indissociáveis, onde o taberneiro, com o seu modo de ser, marca a atmosfera do local. 


Gentes dos Campos do Sul,

"o máximo e mínimo a que podiam aspirar: o descampado dum sonho infinito e a realidade dum solo exausto".

Miguel Torga

Campos do Sul

O blog do Museu da Ruralidade 

  • Os museus são lugares de memória competindo-lhes socializá-las não só sob a forma de divulgação dos respetivos acervos, mas também, e sobretudo, produzindo conhecimento sobre as temáticas que tratam, pois só este caminho poderá levar à compreensão do passado que os museus encerram. E, mais importante que recordar o passado é compreendê-lo. É, pois, com este objectivo que o Museu da Ruralidade cria o Blog "Campos do Sul". Assim, através dele se divulgará o acervo do Museu e os resultados da investigação que a instituição irá realizando ou patrocinando sobre a sociedade rural do Alentejo dos séculos XIX e XX.

Os Campos do Baixo Alentejo

Portugal na década de 1950 é um país maioritariamente agrícola e o Alentejo, nomeadamente o distrito de Beja, é a expressão clara desta realidade.

Nas duas décadas anteriores, muito devido à campanha do trigo lançada em 1929, assiste-se, a Sul, a um aumento significativo da área semeada deste cereal e ao crescimento da população activa na agricultura. Este incremento agrícola não se faz, no entanto, pela via da intensificação da produção nem pela mecanização, mas sim pelo aumento da área cultivada, onde os pequenos seareiros desempenham um papel fundamental desbravando o mato das piores terras do latifúndio com base em contratos de parceria à terça, à quarta ou à quinta. E tudo isto ocorre num quadro duma estrutura fundiária onde domina a grande propriedade, com cerca de 1% dos proprietários agrícolas a serem detentores de perto de 50% da área agrícola do Baixo Alentejo, num contexto económico e social onde pequenos proprietários, rendeiros e seareiros, bem como os assalariados rurais vivem mergulhados em condições de vida muito duras.

Em termos de formas de exploração da terra, no distrito de Beja, domina a exploração por conta própria. No entanto, nos concelhos de piores terras o arrendamento e a parceria atingem um peso significativo, caso de Castro Verde onde 76% da terra é explorada sob a forma desta última modalidade: a parceria. A explicação reside no facto de ser, para os proprietários, mais lucrativa esta forma de exploração do que por conta própria, ou seja, com recurso a mão-de-obra assalariada. É de sublinhar, ainda, a existência nesta década, no Baixo Alentejo, segundo o Inquérito Agrícola de 1952, de 14 705 explorações agrícolas familiares, 73% do total, facto bem revelador do peso social e económico importante dos pequenos e médios agricultores, os quais, apesar da pouca terra que possuem, ajudam a viabilizar os vários ofícios sediados nas vilas ligados ao trabalho do campo: ferradores, ferreiros, albardeiros, abegões, etc.

Na década de 1950, apesar do modelo de desenvolvimento agrícola, assente na conquista de incultos sem alteração dos modos de produção, estar a dar sinais de esgotamento, ainda é a tracção animal que domina e onde o trabalho braçal nas tarefas agrícolas (ceifa, debulha, monda, apanha da azeitona, etc.) desempenha um papel fundamental. Um bom exemplo desta realidade é a situação existente em 1948, à entrada, portanto, da década de 1950, na herdade dos Machados, um latifúndio com 6 000 hectares do concelho de Moura, onde, a par dos 2 únicos tractores existentes, a tracção animal é fornecida por 44 mulas, 20 burros, 170 bois e 80 vacas e onde se empregam permanentemente 450 homens a que se somam 100 a 150 mulheres na monda, 60 a 80 homens na ceifa e 250 homens e 350 mulheres na apanha da azeitona. No entanto, é nos anos 50 do século passado que o processo de mecanização começa a ter o seu incremento, atingindo valores significativos na década seguinte. Para se ter uma ideia desta mecanização real, mas muito lenta, basta referir que de 1952 a 1960, em todo o Alentejo, passa-se de 1401 a 3.894 tractores e de 0 (zero) ceifeiras debulhadoras a 278.

Atendendo aos dados estatísticos, verifica-se que em 1950, no distrito de Beja, existem 69 679 assalariados rurais, o que significa 83,3% da população activa agrícola. Apesar da importância em número, peso social e económico das classes intermédias dos campos do Baixo Alentejo, a esmagadora maioria do trabalho agrícola é efectuado pelos assalariados rurais, aos quais se juntam em determinadas épocas do ano, nomeadamente durante o período das ceifas, ranchos de trabalhadores - homens e mulheres - provenientes, sobretudo, do Algarve. Os grandes proprietários, os que possuem mais e 500 hectares, são poucos, não mais de 1%, mas as suas explorações ocupam cerca de 50% da área agrícola disponível do Baixo Alentejo. Vivem, em regra, na sede do concelho em habitações bem reveladoras da posição social ocupada, e que é a cimeira numa estrutura social fortemente hierarquizada que tem na base os trabalhadores de jorna. São ainda estes grandes proprietários agrícolas que controlam todo o aparelho político e corporativo local do Estado Novo.

Os assalariados rurais do Baixo Alentejo atravessam toda a década de 1950 tentando impor na praça de jornas, sobretudo no Verão, no período das ceifas, quando a situação lhes é mais favorável, aumentos do salário diário, o que só parcialmente conseguem. A mecanização que começa a desenvolver-se a partir de meados da década, retira capacidade reivindicativa aos trabalhadores, o que os leva a deslocarem a centralidade das lutas para a época das mondas. Em termos gerais pode-se dizer que, no final dos anos 50 do século passado, o salário médio de um assalariado rural, fora do período da ceifa, ronda os 26$00 o que não é suficiente para adquirir um cabaz constituído por 1 litro de azeite (14$80), uma dúzia de ovos (9$28) e 1 litro de feijão (5$13), facto bem demonstrativo das condições difíceis em que vivem os trabalhadores do campo. 

Por outro lado, os elevados custos de produção, onde, por exemplo, uma jeira de parelha de muares custa 87$00 e um saco de adubo (amónio) de 100 kg, 230$00, também não facilita a vida a pequenos produtores. Estas condições de vida duras de assalariados rurais e pequenos agricultores são bem visíveis nas suas habitações onde a água é acarretada em bilhas de barro, a confecção dos alimentos se faz a lenha, a iluminação a petróleo e os despejos e dejecções são efectuados no campo.

© 2019 Blog do Tiago. Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por Webnode
Crie o seu site grátis! Este site foi criado com a Webnode. Crie o seu gratuitamente agora! Comece agora